sexta-feira, 5 de julho de 2013

O PLEBISCITO DA PRESIDENTE DILMA

O Brasil despertou. Após anos de letargia, multidões ocuparam as ruas para demonstrar a profunda insatisfação do povo. Não nos enganemos. A causa não foi a elevação do preço do bilhete único em 20 centavos. O aumento do preço, nos péssimos serviços de transportes coletivos, da maior capital do País, apenas acendeu o rastilho que deflagrou explosões provocadas pelo acúmulo de problemas sociais e econômicos entre as classes B, C, e D.

A força incontrolável das massas se fez sentir, repentinamente, em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Salvador, Porto Alegre, João Pessoa, Florianópolis, Campo Grande, na revelação de que a paciência do povo se esgotou diante da corrupção, do peso dos impostos, e da insensibilidade dos representantes políticos diante do descalabro dos serviços públicos.

Cansado de se queixar e não ser ouvido, o povo tomou as ruas, na desesperada tentativa de ser ouvido pelos poderes Executivo, Legislativo, e Judiciário, isolados em Brasília, de onde não conseguem avaliar e sentir o que se passa, cá em baixo, entre a população sofrida e espoliada.

Os governos, como era de se esperar, reagiram, mas demoradamente. Na capital Federal, e nos Estados, o que se viu foram governantes atônitos e perplexos, incapazes de decidirem como e o que fazer. Por falta de coragem, e de liderança, recorreram, como teria feito o regime autoritário, à polícia. Para resolver problemas sociais agudos, retrucaram com bombas de gás lacrimogêneo, cassetetes, balas de borracha.

Sob a pressão das massas, e atemorizada pela subida vertical dos índices de rejeição, a presidente Dilma Rousseff, de moto próprio, ou orientada por assessores palacianos, resolveu aparecer, e o fez com propostas que exibem as marcas da improvisação. A primeira consistiu na ideia de convocação de assembleia nacional constituinte, destinada, é óbvio, a dotar o país da oitava de longa série de constituições, se começarmos pela Carta Imperial de 1824.

S.Exa. demonstrou ignorar que o processo de redemocratização, iniciado em janeiro de 1985 com a eleição de Tancredo Neves, foi concluído com a promulgação da Constituição de 1988, rejeitada na ocasião pelo PT. Conquanto a atual lei orgânica da Nação conceda ao presidente da República longa série de competências, não lhe conferiu a prerrogativa de convocar assembleia constituinte, medida que, nas atuais circunstâncias, equivaleria a golpe branco contra o Estado Democrático de direito.

Alertada por alguém S. Exa. recuou, para voltar com proposta de plebiscito. A figura jurídica não é nova, ou estranha ao ordenamento constitucional; está prevista nos artigos 14, I, 18, §§ 3º e 4º, 49, XV, e no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 2º.

O colégio eleitoral já se manifestou através de plebiscito. Assim o fez quando deliberou sobre a forma de governo (república ou monarquia constitucional), sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo), desarmamento da população, divisão do Pará em dois estados. O perigo, diante da iniciativa atabalhoada da Sra. Presidente Dilma Roussef, consiste na banalização do primeiro dos instrumentos de manifestação da soberania popular (CR, art. 14, I), cuja utilização deve ser reservada a situações para as quais não bastará deliberação do Poder Legislativo, como nas hipóteses previstas no art. 2º do ADCT.

Indagar do colégio eleitoral, por exemplo, se é favorável à existência de suplentes de senador, eleitos segundo a regra do art. 46, § 2º, da Constituição significa lhe submeter problema cuja resposta não será encontrada com "sim", ou "não".

As quatro outras questões: financiamento de campanhas, definição de sistema eleitoral, fim das coligações partidárias, voto secreto no Congresso, são ainda mais controvertidas, como revelam os conhecidos desacordos partidárias, no Senado, e Câmara dos Deputados. São temas complexos, em torno dos quais inexiste consenso nem mesmo no interior da mesma bancada.

Se o Legislativo autorizar o plebiscito, competirá ao Tribunal Superior Eleitoral a formulação das perguntas, cujas respostas a Sra. Presidente deseja conhecer? Penso que não. O art. 2º, § 2º, do ADCT foi dirigido, especificamente, àquele realizado em 21 de abril de 1993, conforme dispôs a Emenda Constitucional 2/92. Esta emenda, no § 3º do artigo único, concedeu ao STE competência "para expedir instruções necessárias à realização "da consulta plebiscitária", e não "de consulta plebiscitária". Destarte, salvo melhor juízo, ao STE caberá organizar a realização do plebiscito, não a responsabilidade de formular perguntas. Indagar é encargo de quem deseja conhecer a opinião de cada eleitor, acerca de tema entregue à deliberação popular.

Consultada a lei 4.737, de 15 de julho de 1965, que instituiu o Código Eleitoral e foi recepcionada pela Constituição, não encontraremos, entre as competências do TSE nada que diga respeito à redação de perguntas a serem dirigidas à população, em eventual plebiscito.

Até onde se sabe, aliás, o TSE não tem perguntas a respeito de coligação partidária, como eleger suplente de senador, quem financiará campanhas, se as vagas na Câmara serão preenchidas pelo voto proporcional, lista flexível, ou fechada, voto majoritário, distrital puro, ou misto, fim das coligações partidárias, voto aberto ou secreto no Poder Legislativo. Responde, se for o caso, "sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político" (art. 23, XII) e, enquanto órgão do Poder Judiciário, julga de conformidade com a lei, para aplicá-la ao caso concreto.

Saberá a presidente Dilma o que perguntar? Essa é a dúvida que paira no ar.

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* Almir Pazzianotto Pinto

quinta-feira, 4 de julho de 2013

CONJUNTURA NACIONAL

Em 5 anos, tudo pode ocorrer

Abro a Coluna com uma historinha que pode servir de orientação para esses tempos de inquietude e grandes mudanças. Um poderoso sultão, sábio entre os sábios, possuía um camelo muito inteligente. Obedecia a todas as ordens que nem precisavam ser emitidas de viva voz. Faltava-lhe apenas o dom da palavra. Esse detalhe entristecia sobremaneira o sultão. Um dia, decidiu convocar o Grande Conselho e chamou o grão-vizir.

- Quero que ensine meu camelo a falar!

- Mas isso é impossível.

- Cortem-lhe a cabeça! Tragam-me o adjunto!

Mesma afirmação de desejo sultanesco, mesma resposta, mesma sentença. A cena repetiu-se diversas vezes e cabeças rolaram. Exasperado o sultão declarou.

- Aquele que ensinar meu camelo a falar será meu grão-vizir.

Silêncio! O sultão repetiu a exortação. Eis que surgiu um humilde ajudante de cozinheiro. Disse:

- Dá-me, ó incomparável senhor, um prazo de 5 anos, e farei falar teu camelo.

Estupefação geral. Seguida do cumprimento da promessa.

- Doravante, és meu grão-vizir! Mas se falhares, sabes o que te espera!

- Bem sei!

Encantado, o jovem fez profunda reverência e saiu correndo para dar a boa notícia à esposa.

- Infeliz, acabas de assinar tua condenação.

- Não é bem assim, meu bem. Pedi 5 anos. Você sabe que muitas coisas poderão acontecer em 5 anos: morre o camelo, morre o sultão...

(Atenção, políticos e governantes: em um ano, tudo pode ocorrer...)

Ressaca geral

Nem bem se recuperou da ressaca geral, o país parece disposto a continuar a beber na fonte das motivações que canalizaram as energias sociais e tomaram conta de ruas, estradas e praças do país. A chama foi acesa. Difícil, agora, será apagá-la. O povo descobriu que tem força para mudar o rumo das coisas. E está gostando de repetir a experiência em eventos menores, descentralizados e agora buscando ocupar regiões, bairros e localidades com demandas específicas.

Auto-gestão técnica

Há anos, um cientista social francês, Robert Lattes, identificava na Europa um sentimento que passava a impregnar os ânimos. Designou o fenômeno de "auto-gestão técnica", algo como: o cidadão define seu destino, seus rumos, suas metas, seus objetivos, e ele mesmo define, escolhe, patrocina os meios para alcançá-los. A auto-gestão técnica se afirma, assim, como um processo de auto-organização. As pessoas estão saturadas de promessas, de discursos mirabolantes, de convívio com signos, símbolos e atores da velha guarda. O que fazer? Escolhem a si mesmo como personagens para refazer os caminhos. Como fazer? Pela agregação, pelo sentimento de unidade, de solidariedade, companheirismo. As pessoas vão se dando as mãos. De repente, forma-se uma Muralha da China, construída com corpos, mãos, braços, vozes em uníssono nas ruas.

Racionalidade

Trata-se de um movimento que também aponta para o fortalecimento da racionalidade. Se as fortalezas do poder não acolhem os guerreiros, estes fabricam seus aríetes e forçam as muralhas poderosas. É o que estamos vendo aqui e acolá. Caminhões tomando as estradas, paralisando o trânsito; correntes humanas andando contra os atores postos na frente das cidadelas do poder. Esta é a nova estética das ruas.

O sapo de olho fechado

Há uma espécie de sapo que fecha os olhos para fugir às intempéries. Pensa-se que está morto ou dormindo. Nem uma coisa nem outra. Está atento ao que se passa ao redor. Depois de fechar os olhos por semanas, de repente abre os olhos e joga a língua para abocanhar os mosquitos que passam à frente. Ganha todos os ataques. A massa se parece com esse sapo. Não estava dormindo. Nem mesmo cochilava. Estava apenas de olhos fechados, enjoada de tanto clamar por coisas que nunca apareciam. De repente, abriu a boca e o bico.

Quem perde, quem ganha

Os perdedores são os alvos mais visíveis do poder. Dilma Rousseff, em primeiro lugar. Por simbolizar a força máxima. Caiu 27 pontos em 3 semanas na avaliação positiva, 9 pontos por semana, um índice extraordinário. Os governadores Geraldo Alckmin e Sérgio Cabral, os prefeitos Fernando Haddad e Eduardo Paes, também caíram bastante, por serem os comandantes dos lugares onde as movimentações ganharam mais força e visibilidade. Alckmin tenta atenuar os efeitos da queda com medidas de gestão, enxugamento da máquina, venda de equipamentos. Não será fácil aos governantes fugir ao tiroteio.

Dilma, o alvo maior

A presidente Dilma Rousseff assumiu um risco de monta. Ao propor a reforma política por meio de um plebiscito, chamou a si toda a responsabilidade pelo êxito e/ou fracasso das demandas do momento. Impõe uma agenda política para o Congresso quando as demandas das galeras cobrem muitas áreas, sendo a frente política apenas uma delas. E as questões da mobilidade urbana, da saúde, da educação, da segurança pública ? Promessas de melhoria nessas frentes só darão resultado no médio e longo prazos. E se a reforma política for um remendo mal costurado na ampla malha de reivindicações? Dilma dá um salto no escuro. São fortes no PT os apelos para que o presidente Lula volte a considerar seu nome no páreo de 2014.

Lula, volta ou não?

Luiz Inácio está calado e fora do país. É conveniente que não circule nas praças cheias de gente. Por enquanto. À boca pequena, petistas torcem por sua volta. Fala-se em 85% dos quadros do partido. Mas é claro que eventual retirada de Dilma para seu reingresso na arena da disputa equivaleria a uma derrota dele mesmo, Lula, eis que seria um reconhecimento de que a candidata falhou no comando do poder. Por isso, é razoável apostar que Dilma continuará firme como candidata. Lula, sim, deverá voltar às ruas para encabeçar um movimento em defesa da presidente. Hipótese a conferir.

Oposições tomam fôlego

As oposições disfarçam, mas estão comemorando o grito das ruas. Enxergam, agora, possibilidade concreta de romper os bastiões do PT e, unidas, tomar o poder em 2014. As somas das intenções de voto em Marina, Aécio e Eduardo Campos chegam, hoje, aos 47% da intenção de voto. Com garantia, portanto, que a campanha iria para o segundo turno. Mas daqui até outubro de 2014, as águas poderão mudar de curso, melhorando para uns e dificultando a navegação para outros.

Os obstáculos

Pela ordem, as dificuldades da presidente Dilma abrigam as seguintes áreas: desemprego - país deixa a situação de harmonia na frente da empregabilidade para enfrentar zonas de turbulência; inflação - aumento da inflação, pegando principalmente os produtos da cesta básica; saúde - continuidade do descalabro nos estabelecimentos públicos de saúde, com imagens de corredores abarrotados de camas; educação de má qualidade - os velhos problemas trazidos à tona pela deteriorada malha educacional; segurança pública - estampas de crimes bárbaros cometidos em série nas grandes cidades. Nesse cenário, a presidente Dilma andará por um calvário, podendo faltar fôlego para chegar à ultima estação.

Recíproca é verdadeira

Se tudo correr bem nas áreas acima enumeradas, Dilma chegará bem na dianteira na fronteira de outubro de 2014.

Plebiscito

A presidente encaminhou ao Congresso a sugestão do plebiscito. Dentre a questões a serem formatadas para efeito de campanha pública, a mais complexa diz respeito ao sistema de voto. O eleitorado, mesmo sob bateria de esclarecimentos, vai ter dificuldade de compreender o que é voto distrital (puro, misto), diferente do voto proporcional, como o de hoje. O financiamento público de campanha vai encontrar barreiras para ser aprovado. A figura do suplente do senador deverá ser extinta. O segundo mais votado assume o posto de senador, em caso de morte ou impedimento do titular. Voto aberto deverá ser aprovado, na onda de transparência cobrada pela sociedade, apesar de se justificar o voto secreto em determinadas circunstâncias. Quando, por exemplo, for votada matéria polêmica de interesse do Executivo. Que pode punir parlamentares que votem contra seus interesses.

Galeria de interrogações

1. Alckmin

Terá muitas dificuldades para se reeleger. A polarização PT versus PSDB está apodrecendo. Alckmin não construiu uma identidade. O governador é ótima pessoa. Mas é um político isolado. Não tem assessoria de qualidade. Sofre da síndrome do "Eu, Sozinho".

2. Aécio

Ainda não construiu um discurso para o país. Tem feito diagnósticos. Não passa disso. Está na cola de Fernando Henrique. Mas o ex-presidente, schollar e bem articulado, não é capaz de liderar massas. É bom em bastidor, não na mobilização de multidões. Aécio pode se dar em MG, mas não tem penetração em SP, o maior contingente eleitoral do país.

3. Campos

Eduardo Campos não mostra a força que dizem ter no Nordeste. Seu índice é muito baixo. Encontra problemas no próprio partido. E, ainda por cima, continua indefinido. Não se sabe se seu amigo Luiz Inácio o segurará na base de apoio a Dilma. Exibe a estampa mais estética dos perfis.

4. Marina

Cresceu bem nos últimos tempos porque é o perfil menos contaminado pela enxurrada da velha política. Asséptica, suave, mas não teria estrutura para atravessar um oceano cheio de surpresas. E tempo de rádio e TV ? Será que as redes sociais supririam suas carências ? Os jovens continuariam a cantar loas no seu altar ?

5. Lula

Perfil mais carismático do país, o ex-presidente não teria as facilidades d'outrora. O PT está muito combalido. Parcela razoável do tiroteio que se destina ao partido bateria também nele. Continua arregimentando as margens sociais, mas é visível seu desgaste nos segmentos do meio da pirâmide, mesmo considerando que contingentes da classe C ingressaram nesse circuito. O tom crítico contra Luiz Inácio se adensa. Mas ele tem o coringa nas mãos. O coringa do carisma.

6. Pezão

O vice-governador, Luiz Fernando Pezão, é um perfil pesado. Aparece em todas as fotos, ao lado de Cabral, Eduardo Paes e até da presidente Dilma. Mas não cresce nos índices de pesquisa. Não tem boa imagem. Uma campanha eleitoral o elevará ? É possível. Mas o efeito Cabral pode segurá-lo.

7. Skaf

Paulo Skaf, presidente da FIESP/CIESP, é a surpresa desses momentos de tensão social e primeiros balancetes pré-eleitorais. Cerca de 20% de intenção de voto. Perfil de trator, realizador, pró-ativo, um passo adiante da velha política. Pode ser a alavanca que o PMDB precisa para resgatar sua história em SP.

8. Padilha

Não tem o que mostrar. Essa ideia de importar médicos cubanos não tem boa acolhida no meio médico. Piadas chovem sobre os médicos cubanos no Brasil. Padilha é o nome de Lula para candidato ao governo de SP. Mas, se ficar abaixo dos dois dígitos nos próximos meses, poderá sair da rota, com o PT fazendo aliança com um candidato de outro partido.

9. Russomano

Tem perfil populista, mas deverá ser candidato a deputado para puxar a bancada de Federais de seu partido, o PRB. Deverá apoiar o governador Alckmin.

10. Lacerda

Márcio Lacerda, prefeito de BH, do PSB, será candidato em MG ? Aécio e o governador Anastasia o apoiarão ? Seria um nome competitivo.

O verbo não "vareia"

A Câmara Municipal de Paulista/PE vivia sessão agitada em função da discussão de um projeto enviado pelo prefeito, que pedia crédito para assistência social. Um vereador da oposição combatia de maneira veemente a proposição. A certa altura, disse que "era contra o crédito porque a administração municipal não merecia credibilidade". O líder da bancada governista intervém, afirmando que "o nobre colega não pode jogar pedras no telhado alheio, pois já foi acusado de algumas trampolinagens".

- Menas a verdade - retrucou o acusado. Sou homem honesto, de vida limpa.

- Vejam, senhores, - disse o líder - o nobre colega, além de um passado nada limpo, ainda por cima é analfabeto, pois, "menas" é verbo, e verbo não "vareia".

Conselho aos pré-candidatos

Esta coluna dedica sua última nota a pequenos conselhos a políticos, governantes, membros dos Poderes e líderes nacionais. Na última coluna, o espaço foi destinado aos políticos e governantes. Hoje, dedica sua atenção aos pré-candidatos no pleito de 2014:

1. Passarinho na muda não pia. Muito cuidado com a farta expressão nesse momento de intensa movimentação social. Apurem os ouvidos.

2. Ajustem os canais de articulação política, na esteira das sondagens, conversas e interlocuções que se multiplicam nos corredores dos Poderes.

3. Procurem entender bem o que se passa no universo social, avaliando os inputs nas frentes das reivindicações e demandas.

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(Gaudêncio Torquato)

quarta-feira, 3 de julho de 2013

COMENTÁRIO DE BOAVENTURA BONFIM SOBRE MARIA DO CARMO DE SOUSA LIMA


Quando o primo e amigo, Júnior Bonfim, fala a respeito de alguém, impossível se nos resta acrescentar qualquer comentário, haja vista sua habilidade de imergir nas profundezas da alma da pessoa objeto de suas belíssimas crônicas.

Dessa forma, cabe-me, simplesmente, corroborar todas as palavras do meu caro amigo Júnior Bonfim acerca da grande educadora e estimada Professora Maria do Carmo Lima, da cidade de Crateús.

No entanto, ouso acrescer pequeno comentário de cunho eminentemente pessoal.

Conheço a história de Dona Maria do Carmo, do saudoso "Seu" Mamede, desde tenra idade, na rua Padre Macedo, a famosa rua da Pimenta.

Tive a sorte e o privilégio de frequentar a casa do “Seu” Mamede e Dona Maria do Carmo, e, portanto, de conviver com uma família constituída sobre granítico alicerce, amalgamado com o amor infinito daquele agradável e feliz casal.

"Seu" Mamede, com sua postura angelical, sua fleuma de monge tibetano e sua imoderada bondade, transmitia serenidade divinal, não só à sua amada família, mas a todos que tiveram a sorte de conviver com aquele ser verdadeiramente humano, cujo exemplo de vida me faz lembrar as palavras de Leonardo Boff a Jesus Cristo: "Tão humano assim, só poderia ser Divino".

Dona Maria do Carmo, além das virtudes magisteriais, destacadas pelo Júnior, e da bondade, encerra em si um caráter também sereno, embora um pouco diferente do “Seu” Mamede. Ela se enquadraria bem na máxima latina: Suaviter in modo, fortiter in re (“Suave no modo, forte na coisa”, isto é, com doçura no modo de proceder, mas com energia na decisão).

Nascida sob as exatas medidas da arte de educar, Dona Maria do Carmo soube conduzir, juntamente com “Seu” Mamede, os filhos pelo caminho da retidão, educando-os não apenas para a escola, mas também para a vida. E, sob as bênçãos de Deus, alcançaram seu desiderato, pois todos os filhos conseguiram obter o grau máximo da condição humana: viver com dignidade.


Fortaleza, Ceará, Brasil, 03 de julho de 2013.


Boaventura Joaquim Furtado Bonfim,
Crateuense radicado em Fortaleza.

terça-feira, 2 de julho de 2013

MARIA DO CARMO DE SOUSA LIMA


Os que colocaram sua inteligência emocional e dedicação laboral a serviço da Escola de 1º Grau Santa Inês realizam hoje um desses eventos arco-íris, espetáculo de luz solar combinado com gotículas de água na comunhão de cores diferenciadas. Eu e minha família não hesitamos em priorizar nossa presença aqui. Embora por um rápido período, aqui lecionei. Aqui fui arrebatado por aquele magnetismo do olhar que nos leva a confeccionar a aliança da alma. Há exatos vinte e três anos iniciava, a partir deste espaço, o idílio que transmutou minha incursão terrena.

Os lugares, os prédios, os espaços de maneira geral estão impregnados de energia. Sobretudo, da energia daqueles que os lideram. Energia, segundo os gregos, é trabalho, algo que move algo, sistema que impulsiona outrem. A termodinâmica acrescentou que energia é também calor. Este espaço, senhoras e senhores, exala o trabalho de amor e o humano calor daquela que foi a sua “Donna Prima”: Maria do Carmo de Sousa Lima. Por isso se consolidou um inquestionável consenso de que os mimos e regalos deste memorável momento são para ela destinados. E por aquela razão que o coração também dá crédito: a razão de mérito!

Primeiro porque ao reverenciá-la - ao invés de presenteá-la - em verdade somos todos dadivados com o laurel de ensinamentos que erigiu pelo fogo do trabalho. A vida da professora Maria do Carmo (que também exalou talento no bordado, na arte de vendas e no embelezamento de cabelos) é uma floricultura de essências espirituais. Dela destaco três rosas de especial perfume.

Antes do mais, o seu incondicional amor à família. Do lar em que nasceu, sob a adoração do pai e o exemplo de luta da mãe, recolheu a argamassa de estremecimento fraterno que usou com Mamede de Melo Lima na edificação do seu radioso lar e dos três pares de filhos: Aureni, a bancária instituída filha por crédito divino; Nonato Melo, profissional da saúde e destacado líder classista na área médica; Zacarias, sacerdote da humildade, profeta que vive em irrepreensível sintonia com as regras sagradas; Célia, enfermeira e militante das boas causas; Eliane, médica pediatra, com extensa folha de serviços prestados na cidade de Crateús e Francisco das Chagas, também médico zeloso e anestesista que atua com o aparelho da serenidade. Colocar filhos no mundo não é tarefa complexa; difícil é tecer com eles os fios da virtude. À gestação basta uma fugaz copulação; uma vida virtuosa prescinde de fé, paciência e, sobretudo, amorosa dedicação. Maria do Carmo percorreu esta última vereda. Não foi apenas a genitora biológica; foi uma mãe ecológica: soube inserir saudavelmente os seus rebentos no meio ambiente da sociedade.

Na mesma trilha, o culto à educação. Maria do Carmo se fez maiúscula soletrando os fonemas de giz e desenhando, sem o saber, a heráldica flor de lis. Sua caminhada pela alameda educacional inclui passeios pelo Colégio Lourenço Filho, Escola Padre Macedo, Escolar Particular Santa Maria Goretti, Educandário Nossa Senhora do Carmo e Escola Santa Inês, cuja direção ocupou por quase uma década e meia. Aqui consolidou a veneração às luzes que saltam das letras. Quando partir para outra dimensão, desta escola quer levar a bandeira sobre o caixão. Foi, portanto, a educação a ponte estaiada que a fez conduzir os filhos ao porto seguro da evolução.

E, por fim, o aprendizado da perda. Em um mundo marcado pela ditadura do sucesso e pela intolerância com perdas, a filha de José Ferreira Lima e Isabel de Sousa Lima encarou com serenidade as tempestades da vida. A perda de Mamede de Melo Lima, o marido de 30 anos de matrimonial união, foi o primeiro grande abalo. Depois, Aureni, a filha do coração, que levou parte da sua alegria e cuja saudade é como um sino que constantemente dobra sua alma.

A perturbação patológica da civilização moderna reside, em grande parte, na corrosão do linho familiar. Maria do Carmo zelou a família como sagrada entidade.

A seta da solução indica a educação como o platô em que recuperamos o oxigênio vital para o soerguimento social. Maria do Carmo escalou esse monte e aí fincou o estandarte do dever de casa.

Harmonizar-se com as pedras do caminho, principalmente com as barreiras batizadas de perdas, é o estágio superior do progresso espiritual. Maria do Carmo o experimentou.

Maria do Carmo. Pela tradução do hebraico, Maria, “Soberana Senhora”. Carmo, de Carmelo, “Jardim ou Vinha de Deus”. Por mística coincidência, neste dia oito (e oito é aliança colada), quis o destino que nos uníssemos para brindar o vinho celeste em honra da soberana senhora que primeiro dirigiu a Escola Santa Inês.

Alegremo-nos pelas maravilhas que o senhor operou nesta sua humilde serva! Salve, Maria do Carmo, pelos benditos frutos que semeaste na Vinha de Deus!

(Júnior Bonfim - crônica lida em 08.06.2013 no Reencontro da Escola Santa Inês -1966/2004, Crateús, Ceará)

OBSERVATÓRIO

Principio com uma fábula. Um abastado negociante de óleos e arroz vivia numa imponente mansão. A sua posição social e a sua mansão só não eram perfeitas porque, à direita e à esquerda da propriedade, havia, há algum tempo, dois ferreiros que trabalhavam ininterruptamente, tinindo e retinindo malhos, bigornas e ferraduras. Incomodado, o negociante resolveu chamar os dois ferreiros, e ofereceu a eles 1000 iens de compensação, para que ambos se mudassem com suas ferrarias. Os dois ferreiros acharam tentadora a proposta (um ien, na época, valia mil euros) e prometeram pensar no assunto com todo empenho. E pensaram. Foi tanto o empenho que, apenas dois dias depois, prevenidamente acompanhados de advogados, compareceram juntos diante do proponente. E assinaram contrato, cada um prometendo se mudar para outro lugar dentro de 24 horas. O rico comerciante pagou imediatamente os 1000 iens (que a essa altura já eram 10.000) prometidos a cada um e foi dormir feliz, envolvido em lençóis de seda e adorável silêncio. Mas no dia seguinte acordou sobressaltado, os ouvidos estourando com o mesmo barulho de sempre. E, quando ia reclamar violenta e legalmente contra a quebra de contrato, verificou que não tinha o que reclamar. Os dois ferreiros tinham cumprido fielmente o que haviam prometido. Ambos tinham se mudado. O ferreiro da direita tinha se mudado pra esquerda e o da esquerda tinha se mudado pra direita...

AS MANIFESTAÇÕES

Como na fábula acima, firmou-se um entendimento de que tradicionalmente, no Brasil, as coisas mudam de lugar para permanecerem do mesmo jeito. É óbvio que há um pouco de exagero nessa assertiva. As caudalosas ondas de ebulição popular que ganharam corpo no país inteiro ultimamente trouxeram à praia da nossa consciência éditos de transformação. A avalanche das ruas, produto de um desordenado, porém crescente movimento nos trouxe a clara certeza que era ilusória a zona de conforto antes imaginada. O progresso das políticas sociais implementadas nos últimos anos suscitou a vã conclusão de que o país das bolsas estava com o bolso cheio de felicidade. Era a aparência, mas não a essência da realidade.

AS MANIFESTAÇÕES II

A verdade é que havia um latente sentimento de inconformismo que estourou nos últimos dias. Alguns recados, de tão nítidos, são inquestionáveis. 1. A mobilização das massas deixou de ser prerrogativa das lideranças, políticas ou sindicais. Anônimos, de posse de um aparelho conectado à internet e uma mensagem convincente, podem levar multidões às ruas. 2. Há uma repulsa ao autoritarismo. Um governo, mesmo lastreado em popularidade (como era o caso da Presidenta Dilma), não pode se achar no direito de vomitar arrogância. O respeito e o apoio populares não suprimem a necessidade do diálogo constante. 3. O povo cansou do riso vitorioso das velhas raposas da política tradicional. A política, enquanto arte da esperteza e do malabarismo ardiloso, recebeu um cartão vermelho. Por isso o slogan “o povo unido sem partido”; por isso foi hasteada a bandeira da candidatura avulsa. O modelo de escolha dos nossos representantes está ultrapassado, em especial o formato de financiamento das campanhas eleitorais. 4. O dínamo da História é inexorável. A obtenção de conquistas gera o desejo de aquisição de outras melhorias, algumas dantes nunca imaginadas. Há um impulso permanente para se subir novos degraus na escada da vida. Quem representa o povo não pode desconsiderar isso. 5. Enganou-se quem imaginou ser esse um movimento pontual. Ele é mais amplo do que se pressupõe. Um dos antes anônimos que se sobressaiu nessa luta concedeu entrevista à Revista Veja desta semana argumentando que a sua luta não é por centavos, mas pelo aprofundamento da democracia, por um País melhor. 6. A Pátria parece passar por uma espécie de catarse, processo de purgação. Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama. 7. Valores como a transparência, a decência, o diálogo, a humildade, o respeito e o cuidado são valores que iluminam a montanha sagrada da essencialidade permanente. O desassossego civilizacional que experimentamos parece sinalizar que o caminho é a retomada desses princípios de vida. Isso, porém, é um movimento que deve começar dentro de cada um de nós. Não basta transferir culpas. Temos que assumir primeiro as nossas responsabilidades cidadãs, dando o exemplo. 8. É indiscutível que essa escalada mudancista, em grau de intensidade que ainda não podemos aferir, terá reflexos nos embates políticos municipais. Quem sobreviver, verá!

SANTA INÊS

Os que serviram à Escola de Primeiro Grau Santa Inês (1966-2004) na condição de dirigentes, professores, funcionários e alunos promoveram um animado reencontro no dia 08 de junho de 2013. A homenageada principal foi a primeira diretora da escola, professora Maria do Carmo de Sousa Lima, que surpreendeu os ex-colegas de trabalho distribuindo para cada um presentes que ela mesma confeccionou. Na ocasião li uma crônica.

PARA REFLETIR

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos e ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.” (Fernando Birri, cineasta argentino)

(Júnior Bonfim, na edição de hoje do Jornal Gazeta do Centro Oeste, Crateús, Ceará)




segunda-feira, 1 de julho de 2013

LIÇÕES DE AUTOAJUDA PARA POLÍTICOS EM APUROS

Nestes tempos de barata-voa para tantos líderes mundo afora, desorientados com a agitação e ruído que lhes chegam das ruas, não custa desengavetar alguns ensinamentos contendo a essência do saber político do maior e único estadista de grande porte ainda vivo - Nelson Mandela.

São ensinamentos práticos, ancorados diretamente na experiência pessoal de seu formulador e foram sintetizados pelo americano Richard Stengel, que passou dois anos ao lado do líder do movimento antiapartheid para ajudá-lo na feitura de seu livro de memórias, “Longa Caminhada Até a Liberdade”.

Trata-se de uma receita em oito tópicos. À primeira vista, ela soa como uma lição de autoajuda, fácil de ser seguida, embora os líderes atarantados de hoje não pareçam equipados para absorver seus fundamentos.

Mandela, na verdade, nunca se sentiu confortável em arrostar conceitos abstratos. Preferia repetir para Stengel que “problemas não são uma questão de princípio e sim de tática”.

A seguir, o roteiro da tática de liderança de Mandela, que conseguiu derrocar o sistema do apartheid e instalar uma democracia não racial no país por saber, como ninguém mais, quando vestir qual dos seus múltiplos papéis – o de combatente, mártir, negociador ou estadista:

1) Saber que coragem nada tem a ver com ausência de medo. Coragem é levar o povo a se mover para além do medo;

2) Assuma a liderança, mas não se afaste de sua base. Seja leal a quem o colocou no poder. Ao se confrontar com uma decisão difícil de ser tomada, ou se ver numa situação espinhosa, certifique-se de que seus aliados compreendem seus atos e motivações. Uma comunicação franca com as bases aumenta o tamanho do apoio que receberá, mesmo que você não obtenha concordância plena;

3) Saiba liderar da retaguarda, permitindo a outros convencer-se de que estão na linha de frente das decisões. Ouça os seus comandados e não interfira nos debates cedo demais. Ao final da rodada, compartilhe suas ideias e conduza a decisão na direção desejada sem soar impositivo;

4) Saiba tudo sobre seu adversário;

5) Mantenha próximos seus amigos ; mantenha seus rivais mais perto ainda. Adversários se tornam menos perigosos quando mantidos sob seu radar;

6) Lembre-se de sorrir . Aparências contam. Primeiras impressões são as que duram;

7) Nada é preto ou branco. Adote o poder do “e”, no lugar do e “isso/ ou”- até porque a vida não é assim. Visto que decisões e situações já são complicadas por si, convém aprender a navegar através de contradições;

8) Desistir também faz parte do saber liderar. Acolha a realidade e saiba quando aceitar uma derrota com elegância. Saber quando abandonar uma ideia falida é uma das decisões mais difíceis para um líder, sobretudo quando ele é o autor da ideia.

Fossem essas meras formulações sem substância ou resultado comprovado, Nelson Mandela não teria um país inteiro (mais meio mundo) em estado de vigília solidária diante da infecção pulmonar que teima em impedi-lo de completar 95 anos, no próximo dia 18 de julho.

Na tarde de sexta-feira passada, a poucos quarteirões do Hospital do Coração de Pretória onde se concentra a vigília nacional africana, centenas de sindicalistas e estudantes sul-africanos trocaram orações por palavras de ordem e foram protestar contra a visita oficial ao país do presidente americano, Barack Obama.

“Esperávamos mais do primeiro chefe de Estado negro dos Estados Unidos”, explicou um manifestante que reclamava da política externa “arrogante”, “egoísta” e “opressiva” do atual ocupante da Casa Branca. “Ele nos decepcionou. Acho que também Mandela se sentiria decepcionado se estivesse acompanhando.”

Obama só encontrara Mandela uma vez, em Washington, oito anos atrás, quando ainda era um quase desconhecido senador júnior pelo estado de Illinois. Em suas próprias palavras, sentira-se um calouro diante do homem que admira desde jovem.

Desta vez, em terra africana, teria gostado de poder se reapresentar ao ícone africano como presidente dos Estados Unidos que conseguiu se eleger duas vezes. Eleito duas vezes. Teria sido um encontro rico em simbolismo de dois homens negros que fizeram História rompendo barreiras raciais em seus países.

Ambos são detentores do Prêmio Nobel da Paz, mas qualquer analogia para aí.

A arrebatadora bandeira do “Yes, We Can”, que impulsionou Obama para a vitória e embalou sua imagem como líder de uma nova América, hoje soa quase constrangedora, por esvaziada.

Já Mandela pode repetir à exaustão, e sem cansar ninguém, sua variante histórica do que é possível alcançar. “Nós conseguimos o impossível”, diz ele. “O Partido Nacional [responsável por meio século de dominação branca na África do Sul] prometeu jamais negociar conosco por sermos uma organização terrorista. Mas engoliram suas palavras e orgulho. Sentaram e negociaram conosco.”

Parte dessa exitosa receita se encontra no aprofundamento dos oito tópicos citados acima. Rascunhados enquanto Mandela ainda cumpria seus 27 anos de prisão, eles continuam a ser atuais.

Tanto quanto a admiração mundial para com um estadista que já está fora do poder há 14 anos, retirou-se da vida pública há 10 e soube, como poucos, calibrar o peso de sua influência na aposentadoria. Para todos os Obamas, Dilmas, Erdogans ou Morsis em apuros recentes com as ruas, um craque para ser admirado.



Dorrit Harazim é jornalista.

ATÉ QUE ENFIM, O BOLSA-CABEÇA

Ufa! Recado dado, pacote providenciado. O recado: a tolerância chegou ao limite. O copo da velha política transbordou.

Chega de aceitar a banalização do mal, estampada na fila de criminosos sem punição, corrupção desenfreada, promessas não cumpridas, representantes que pouco representam e governantes que não praticam a governança, por agirem apenas como gerentes ou por serem vistos como galhos da árvore patrimonialista.

Velhos presentes continuarão a ser bem aceitos, principalmente aqueles que se destinam a saciar a fome. Exemplo é o Bolsa-Barriga, fruto do programa que abastece o estômago de 40 milhões de pessoas sob o abrigo de 13 milhões de famílias.

A mensagem principal do recado é que o ronco da barriga subiu à cachola, abrindo um ciclo de novas percepções. A sociedade clama, agora, por um Bolsa-Cabeça. Essa é a notícia alvissareira que se extrai da movimentação de massas que sacode o país.

Fica patente que barriga satisfeita pode, até, cooptar a harmonia social e sustar a indignação por um tempo. Não, porém, por todo o tempo. A inteireza do corpo social requer também uma cabeça capaz de racionalizar, avaliar, exigir, cobrar, portanto, pronta para reescrever sua história.

O espetáculo das ruas tem também esse significado. Saciada a fome das margens muito pobres, garantida a inserção de um novo contingente no meio da pirâmide, afloram, agora, as clamadas demandas nas áreas da saúde, educação, transportes públicos e segurança pública. Por que só agora? Se as reivindicações são tão antigas por que deram um susto em gregos e troianos, centrais e suburbanos? Há explicações.

A travessia de uma Nação obedece a um processo que envolve grandes movimentos de massa, com efeitos absorvidos pelas instituições, ou revoluções, que acabam rompendo a velha ordem.

Avanços sem rupturas na fisionomia democrática ocorrem de maneira lenta e gradual, particularmente no seio de democracias consolidadas. Instituições fortes não desmoronam ante os rebuliços da contemporaneidade.

Vejamos o caso brasileiro. Nossa democracia é incipiente. O país dispõe da mais democrática Constituição de sua história, plasmada para acolher uma visão plural da sociedade. Mesmo assim a caminhada brasileira depara-se com muitos desvios.

Há buracos ainda não preenchidos pela legislação infraconstitucional, ensejando situações que empurram a Corte Suprema para a esfera política, conforme se constata pela interpretação que oferece sobre matéria de fundo político. Deriva daí a questão sobre a “judicialização da política”.

Difunde-se a expressão de que as tensões entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, decorrentes de interpenetração de funções, são normais e não ameaçam a normalidade democrática. Seria, até, sinal eloquente da vitalidade de nossa democracia

Não há como negar que a mania de querer esconder o clima tenso faz parte da cultura de contemporização que finca raízes profundas em nossos trópicos. A mania de deixar o dito pelo não dito, de desdizer o que foi dito, de postergar soluções para os problemas, de enfiar a sujeira por baixo do tapete, de não cumprir promessas feitas, toda essa colcha de retalhos mal costurados serve para explicar as manifestações populares.

A esfera política se distanciou das ruas. Se o governo federal não registrou sinais de sismo, é porque entendia que a harmonia social estaria preservada pelos bolsões de “barriga saciada”

A explosão pegou de surpresa governos e representantes, a traduzir insatisfação com o status quo. E, por um desses milagres que parecem confirmar a crença de que Deus é um pouquinho brasileiro, projetos de impacto, mofando há tempos nas gavetas, emergem e entram na planilha das decisões.

Em menos de uma semana, o Brasil dá um salto de modernidade. Nunca em tão pouco tempo as casas congressuais foram tão produtivas. Até a corrupção (quem diria) adentra o território dos crimes hediondos.

O fato é que o país real começa a ser desenhado, mesmo sabendo que há outro, falso, rodeado por castelos de areia. Basta anotar as incongruências.

O orçamento de 2010 e 2011 alocou R$ 12 bilhões para o Ministério dos Transportes, enquanto a peça de 2012 contemplou R$ 14 bilhões, recursos que, aliás, não foram usados na totalidade. Retrato da desorganização. E não é que o presidente da empresa de planejamento e logística, Bernardo Figueiredo, confessa que o nosso déficit em rodovias, portos, ferrovias e afins se aproxima de R$ 600 bilhões?

Afinal, qual é o território real, o do pequeno orçamento ou o do gigantesco déficit?

Dito isto, chegamos ao Bolsa-Cabeça, que está sendo organizado por apressadas providências do Executivo e surpreendentes decisões do Legislativo. Vão arrumar grana para colocar em pé o edifício do Brasil -Verdadeiro? Aprovam royalties do pré-sal para a educação. Bom.

Mas as turbas aguentarão sem reclamar uma espera de 6 a 7 anos, prazo calculado para aquela camada de óleo ser capturada? As marés revoltas puxam outras interrogações: para onde o país deve ou quer chegar? Que políticas públicas se fazem necessárias, desde já, para conter a avalanche social? Qual o modelo de governança eficaz e abrangente, capaz de juntar os conjuntos políticos, as forças produtivas e as organizações sociais no entorno de um grande projeto de Nação?

Se não houver respostas para estas questões, é arriscado garantir que tudo continuará como d’antes no quartel d’Abrantes.

A sociedade organizada tem demonstrado saber usar seus aríetes para furar os bloqueios das fortalezas do poder. O choque do futuro foi anunciado. A névoa moral começa a ser dissipada.

E que não haja dúvidas sobre o florescimento de uma nova ordem, que impactará os sistemas político/governamental, as áreas produtivas, os campos profissionais e os espaços sindicais, entre outros.

Que se apresentem, logo, saídas largas para o clamor das ruas. Sob pena de ouvirmos o cochicho de Hobbes: “quando nada mais se apresenta, o trunfo é paus”.



Gaudêncio Torquato